domingo, 28 de novembro de 2010

Estratégia para formação da baianidade

A identidade

A construção identitária de um indivíduo, ou um grupo deles, está direta e indissociavelmente ligada ao meio sócio-cultural no qual está inserido. Obviamente, a posição geográfica ocupada por este indivíduo, sua naturalidade, será um forte agente condicionante de seus laços identitários, mas “a identidade é definida historicamente, e não biologicamente” (HALL, 2003, pg. 18); tal condicionamento é apenas uma conseqüência dos processos de experimentação social e discursiva aos quais o indivíduo não só foi exposto, mas participou ativamente.

Considerando o vultoso progresso técnico dos sistemas de comunicação a afirmação anterior se faz ainda mais pertinente. A interação entre as mais diversas regiões do globo terrestre foi deveras potencializada, o que ocasionou, dentre muitos outros fenômenos, um processo de desterritorialização da cultura– à exemplo da formação de grupos sociais que, independente dos fatores tempo e espaço, valorizam simultaneamente elementos de várias culturas. O processo de construção identitária do sujeito pós-moderno é dinâmico e constante, intrinsecamente relacionado à guisa que somos concebidos e interpelados pelos aparelhos culturais que nos envolvem– concessões e interpelações estas que, ao longo do tempo, asseguram que “dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas” (HALL, 2003, pg. 18).

Para o presente estudo, se faz necessário perceber que “a identidade plenamente unificada, ompleta, segura e coerente é uma fantasia” (HALL, 2003, pg. 18), por mais almejada que esta plenitude seja. A dita baianidade é um constructo identitário-cultural bastante conhecido e disseminado; uma tentativa de homogeneização cultural do vasto e plural estado que é a Bahia numa reduzida gama de características estereotipadas. Mas, a fim de que a compreensão deste artigo seja verdadeiramente atingida, é preciso ser ainda um pouco mais crítico e atentar para as articulações políticas, sociais e econômicas que existem por trás de toda identidade e, principalmente, para o papel que o aparelho midiático contemporâneo desempenha na manutenção destas.

Assim sendo, intuito deste artigo é analisar os mecanismos de construção discursiva contidos nas peças televisivas da campanha publicitária veiculada pela Empresa de Turismo da Bahia, no fim do ano de 2005 e no início de 2006. Seguindo a doutrina da Análise do Discurso, serão considerados para a realização de tal análise os aspectos lingüísticos e discursivos evidentes nas construções verbais das peças: preferências lexicais, tendências verbais, elementos dêiticos, entre outros– concentrando-se esforços na compreensão da relação estabelecida entre linguagem, imagem e construção de identidade do povo baiano em prol do objetivo maior na qual estão todos pautados.

A baianidade: o baiano e sua pretensa identidade cultural homogeneizada

A condição de “ser baiano” implica não só em encaixar-se em uma série de determinações como entonação vocal, gosto culinário, humor, disposição física, vícios comportamentais, mas, sobretudo, em sentir-se reconhecido como tal. Baiano que é baiano está sempre contente, gosta de acarajé, é enérgico e fortemente ligado as suas raízes, não é verdade?

A baianidade, assim como foi dito de toda e qualquer identidade, não é apenas um fenônemo de supervalorização do patrimônio cultural baiano, ela tem um propósito a servir. O Governo do Estado (vigente na época) determinou este propósito: o turismo.

Desde a década de 70 que há a proposta de publicizar a Bahia não só enaltecendo sua exuberância natural, mas também exibindo a diversidade e unicidade de suas manifestações culturais, em especial as afro-descendentes. Na época, o principal instrumento de propagação da idéia era o próprio turismo, ao qual ela servia, mas, com o avanço dos meios de comunicação no Estado, a baianidade foi ganhando todo um apelo midiático que acelerou em muito sua consolidação.

No processo de sustentação do apelo cultural em prol do turismo, a mídia “age também como importante e interessada agência dessa fabricação da identidade baiana atual” (RUBIM, 2001, pg.17). A TV Bahia é o primo exemplo dessa mobilização midiática: a emissora edificou uma faceta deveras diferenciada da Rede Globo de Televisão, ela foge do estigma de mera repetidora da Rede Globo de Televisão e utiliza- se de uma estrutura de marketing cultural violenta a fim de viabilizar uma imagem própria, com forte identificação com a chamada Bahia reinventada (MELO, PROCÓPIO, 2004, pg. 4)

Uma estratégia que não só sustenta um objetivo maior, mas finda por ocasionar um retorno direto à emissora, pois “em uma circunstância de globalização, o local pode dar possibilidade

identitária, pode ser diferencial relevante de inscrição na sociedade e no mercado competitivos”

(RUBIM, 2001, pg.17).

No tópico seguinte serão explicitados alguns dos artifícios discursivos presentes nas peças veiculadas pela mídia a fim que se possa perceber a utilização da identidade cultural da Bahia como instrumento de fomento ao turismo– e, no caso particular do objeto estudado, também para a auto-enaltecimento do próprio Governo do Estado.

A campanha e o discurso: a análise

Como sobredito, ocorpus da pesquisa são as peças televisivas da campanha publicitária criada pela agência de publicidade Rede Internacional de Comunicação S/A, Malagueta Filmes, promovida pela Empresa de Turismo da Bahia, vulgo Bahiatursa, e veiculada por diversas emissoras de televisão nos anos de 2005 e 2006. A campanha tinha como objetivo reforçar a imagem da Bahia como uma interessante opção turística, uma comunidade plural, repleta de aventura e festa.

Dentre as cinco peças que formam a extensão total da campanha, apenas duas delas tem como função construir no imaginário do espectador uma projeção da Bahia, as outras três, de menor duração, apenas se apóiam nestas e se utilizam de recursos como o humor para recorrer a esta projeção, mantendo assim o espectador constantemente conectado a ela. Como a parte imagética das peças do discurso não acrescenta muito em nossa análise, principalmente devido à metodologia escolhida, nos deteremos às construções verbais de tais anúncios.

É bastante recorrente nas peças a presença do“outro”, do estrangeiro; encantados não só com exuberância da beleza natural da Bahia, mas com a condição de ser baiano, aproximando-se a todo tempo do supracitado estereótipo da baianidade. Dos cinco locutores apresentados na peça “Carnaval do Planeta”, quatro são representações deste strangeiro; representações estas que sustentam algumas características ditas“tipicamente baianas” e se intitulam baianos.

Exemplo 1:

“Meu estado da Bahia está crescendo mais que o Brasil nos últimos anos”

Carnaval do Planeta

Exemplo 2:

“Eu tenho orgulho de ser baiano”

Carnaval do Planeta

Ao considerar um estrangeiro, que nem sequer domina a língua portuguesa, um baiano há uma reafirmação do fim puramente comercial dessa construção identitária denominada de baianidade. Fazê-lo é assumir que a baianidade não passa de uma máscara imaginária vendida aos turistas, que podem intitular-se baianos a partir do momento em que atendam a todos os pré-requisitos– portem todas as características apresentadas pela mídia– para reconhecer-se como tal. Fica possível então perceber a criação de um novo produto turístico, um produto incorpóreo e alegórico: a condição de

“ser baiano” – forjada não só pelos órgãos oficiais de turismo e cultura do estado da Bahia, mas

também por todo o povo baiano a partir da legitimação do discurso da baianidade.

A festa é um componente primordial, e constante, da identidade do baiano e sua maior

representação é o carnaval. A manifestação cultural que foi progressivamente reduzida à mera festa

– complexo processo que vai além da alçada do presente estudo – é indissociável à figura do

“baiano midático”; quando não se encontra presente em seu discurso pode ser reconhecido no seu

comportamento, pela (suposta) alegria, disposição e criatividade baianas– mas nunca está ausente.

Exemplo 3:

““Tinha mesmo que fazer a maiorfesta do mundo paracomemorar.”

Carnaval do Planeta

Exemplo 4:

“Cê vai se acabar no carnaval da Bahia”

Carnaval do Planeta

Faz-se imprescindível perceber como o forte apelo imagético, mais perceptível na peça intitulada “Verão 2006”, se encarrega de evidenciar e ratificar essa constituição popular comungada pelos baianos mesmo que por meio da exploração dos menores detalhes presentes no cotidiano da população baiana: é repetidamente acentuada a condição multirracial, a invocação da beleza feminina como atributo geográfico, a simpatia e hospitalidade para com o turista, a alegria, a criatividade. Nada passa despercebido– inclusive a beleza natural do estado.

Término: a máscara corroborada

As estratégias de marketing para o turismo são pautadas na veiculação de uma imagem extremamente simbólica da Bahia. A concepção desta tem como pilar a constante legitimação da baianidade, discurso urdido ao decorrer das últimas décadas não só pelo Governo do Estado, mas, principalmente, pela comunidade artística– com o aval da população baiana.

A campanha em análise então nada fez, além de estabelecer uma composição que “faz com que esse receptor reconheça-se como consumidor na imagem publicitária, ou que pelo menos, deseja ser o personagem que o representa na publicidade” (BIGAL, 1999, p.58), fazendo com que (tanto o baiano quanto) o turista deseje(m) compartilhar um pouco dessa baianidade– pautando-se na necessidade econômica da afirmação e disseminação de uma identidade positiva, e atrativa, para a Bahia. Na verdade pode-se afirmar que a publicação do produto turístico Bahia compactua perfeitamente com o discurso identitário proveniente de escritores, compositores, artistas e todos aqueles que compuseram certa interpretação da Bahia e da baianidade; o discurso da construção da identidade cultural baiana não foi deturpado, apenas ganhou com o suporte miditático mais um forte mecanismo de reforço, perante todo o Brasil e o estrangeiro, para o caráter lúdico de ser baiano, o simulacro da baianidade– interligado a uma cadeia de elementos culturais, étnicos e até místicos, que transcende a realidade e incorpora uma representação do real.

Assim sendo, ficam bastante perceptível os laços da mídia com a construção e sustentação da identidade cultural baiana, além de sua posição enquanto um dos principais fatores responsáveis pelo posicionamento da Bahia como pólo turístico basilar do nordeste do Brasil.




http://www.scribd.com/doc/37685905/O-estigma-da-baianidade-no-campanha-publicitaria-do-governo-do-estado-da-bahia-em-2006

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